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Por Nélio Meneses
Nesta semana milhões de pessoas espalhadas pelo Brasil visualizaram um vídeo através de sites, programas de TV, no qual o prefeito de São Paulo, Dória, que veio a Salvador receber uma homenagem promovida pela Câmara Municipal para se tornar cidadão soteropolitano, foi surpreendido com um ovo, que explodiu em sua cabeça. O fato, apesar de ser pitoresco, não é inédito aqui em nossa cidade. Há quase 28 anos atrás, um fato parecido ocorreu aqui em Salvador. Naquela época envolveu uma figura polêmica, não na esfera política, mas na área esportiva. O fato ganhou na época grande destaque nacional com cobertura em jornais, revistas, emissoras de rádio e TV.
Resolvi tomar coragem para escrever este conto, mesmo sabendo que isso tudo pode ter sido imaginação da minha e que talvez tenha sido somente a minha interpretação sob o ocorrido. Para isso, sugiro a você leitor, que pesquise sobre informações deste incidente que irei narrar, ocorrido em 1989, na Fonte Nova, envolvendo a torcida baiana e o atacante Renato Gaúcho, da seleção brasileira. Por enquanto, permita-me levá-los a esta época e explicá-los como tudo aconteceu.
Esta estória estava guardada a sete chaves, pois mesmo tendo ocorrido há muitos anos, envolve pessoas, as quais, por razões estritamente de amizade, irei preservar os nomes. Contudo, o leitor poderá entender como tudo aconteceu e fazer seu juízo de valor a respeito do que levou alguém, que recebeu e cumpriu uma missão de caráter religioso, a qual serviu para demonstrar toda a indignação de uma nação, e de um estado chamado Bahia. Antes de começar irei contextualizar, do ponto de vista esportivo, a importância deste evento que seria realizado em nosso território.
A 34ª edição da Copa América seria disputada entre os dias 01 e 16 de julho de 1989. Pela quarta vez, a sede do torneio seria o Brasil, que havia sediado pela última vez na edição de 1949. Portanto, era a primeira competição oficial sediada em território brasileiro, desde a Copa do de 1950.
Foram escolhidas quatro sedes, Salvador e Recife (grupo A), Goiânia (grupo B) e Rio de Janeiro (fase final). Vale destacar que a torcida baiana, inconformada com a não convocação de Bobô e o não aproveitamento de Charles (jogadores que ajudaram na conquista do Bahia do Brasileiro de 1988) pelo técnico Lazaroni, decidiu protestar na Fonte Nova, não apoiando o time e vaiando o selecionado durante todo o jogo, inclusive durante a execução do hino nacional. Deste cenário que surgiu um dos episódios mais pitorescos na história do futebol nacional, o dia em que o ovo, símbolo da fartura e da vida, serviu para demonstrar a indignação da nação tricolor. Voltemos então ao ano de 1989.
Tudo começou quando a professora Lúcia, uma excelente profissional que lecionava no Centro Educacional Anísio Teixeira, solicitou aos alunos da oitava série que fizessem um trabalho sobre a importância da participação dos negros e índios na independência da Bahia. Estávamos próximo à data comemorativa do dia 02 de julho, um marco na história dos baianos. O trabalho deveria ser feito em dupla e teríamos que preparar uma pesquisa, cuja abordagem teria como escopo os aspectos religiosos e culturais dos índios e negros na independência do nosso estado. Após a explicação de como deveríamos elaborar a pesquisa, a professora começou então a separar as duplas, chamando-as a comparecer à frente da sua mesa e depois usando aquela voz grave, ela disse:
– Prazo para entregar o trabalho será o dia 05 de julho. Estão dispensados!
Pró Lucia era daquelas professoras linha dura e que não admitia brincadeiras na hora da aula, era exigente nas correções das provas e trabalhos, nos quais, costumava exigir mais daqueles alunos que se desviavam do seu padrão. Hoje, reconheço o quanto ela foi importante na educação e na vida de milhares de alunos que estudavam na minha escola, sempre dedicada a melhor formação dos seus alunos, mesmo sem ter as condições ideais de ensino, ensinava-nos com intensa dedicação e empenho.
Aos pares, os alunos iam saindo da sala deixando-a quase vazia, e para variar, nos deixou por último. A dupla inseparável, eu e meu amigo Bolão. Nós éramos, sem dúvida, os alunos mais indisciplinados da turma, tínhamos um enorme histórico de visitas ao SOE (serviço de orientação aos estudantes).
– Vocês terão um prazo diferenciado. Falou ela sorrindo e nos fitando com o canto dos olhos, proferindo a sentença:
– Prazo para entrega dia 04 de julho!
– Como assim? Perguntou Bolão.
– Professora, eu acho isso injusto. Todos tiveram o prazo de entrega maior. Falei tentando demovê-la da ideia.
– Não acho injusto. Vocês dois são os que mais conversam e que menos prestam atenção à aula, logo penso eu, já devem dominar o assunto. Ponderou a professora com certo ar de deboche.
– Professora! Dia 02 é feriado e 03 de julho a seleção irá jogar na Fonte Nova. A senhora não gosta de futebol? Só se fala isso na cidade. Bolão tentava persuadi-la na esperança que ela aumentasse o prazo.
– Infelizmente não acompanho futebol. Mas, farei um acordo com vocês. Caso vocês consigam entregar o trabalho no prazo e junto trouxer um texto que prenda a minha atenção, contando a experiência de vocês neste jogo, posso dar dois pontos extras a vocês. Combinado?
Era uma proposta que poderia render pontos extras e isso era algo que estávamos precisando para passar de ano. Em ato contínuo balançamos a cabeça concordando. Saímos da sala e fomos conversando a respeito de como faríamos o trabalho, e paramos próximo ao campinho onde jogávamos bola. Decidimos que iríamos procurar nos livros os temas, e que depois do almoço deveriamos nos encontrar para acertarmos os últimos detalhes a respeito da pesquisa. Tenho que esclarecer aos leitores que além de estudarmos na mesma sala, eu e Bolão, morávamos no mesmo conjunto habitacional, localizado na ladeira do Paiva.
– Bola como é que você vai falar do jogo da seleção para a professora? Agora além de ter que entregar a pesquisa com um menor prazo do que os outros, teremos que fazer um texto a respeito do jogo. Eu não queria nem ir a este jogo. Falei de forma incisiva.
– Estou puto com o Lazaroni, o cara foi incapaz de convocar Bobo e Charles. O Bahia foi campeão recentemente e merecíamos estas convocações. Como é que pode vir jogar aqui um torneio importante desse e não convocar nenhum jogador do Bahia. Se fosse algum time do sudeste não tenho dúvida que ele convocaria uma meia dúzia do time campeão. Continuei em tom de desabafo.
– Também estou revoltado velho, mas foi a única coisa que veio à mente. Bolão resmungou.
– Agora teremos que ir ao jogo. Não tenho dinheiro para comprar o ingresso e vamos fazer como? Perguntei a ele.
– Fique tranqüilo. Meu tio trabalha no borderô da SUDESB e vou falar com ele. Bolão sorriu tentando me tranqüilizar. Nos despedimos e fomos almoçar.
À tarde, nos encontramos lá na casa dele e decidimos que precisaríamos ler a respeito das religiões africanas e sobre os caboclos, passamos a tarde lendo livros, revistas e ao final do dia concordámos que deveríamos ir, na manhã seguinte, a um espaço que representasse a cultura negra. Escolhemos o Terreiro Cafungi Abaluaê, localizado no bairro da Cidade Nova, fundado em 1974, pertencente a nação Angola, que ficava próximo a casa de uma tia dele. Também ficou decidido que iríamos a tarde ver o caboclo na Lapinha, outro bairro próximo de onde morávamos, para complementar o trabalho, coletando dados a respeito da participação indígena na Independência da Bahia.
No dia seguinte pela manhã, nos encontramos depois do café e lá fomos nós até a Rua 24 de junho na Cidade Nova. Escolhemos ir através do Freitas Henrique de baixo, pois teríamos a oportunidade de comprar algumas arraias durante a passagem por lá. Ao chegarmos próximo do terreiro, percebemos que havia uma imensa movimentação, pessoas circulando, carros estacionados na rua e o som parecia um pouco mais alto, à medida que nos aproximava-nos. Com um misto de medo e curiosidade perguntei a uma senhora simpática, vestida de branco, que estava próximo
à casa, a respeito do que se tratava aquela movimentação toda no terreiro. E ela, bem solícita, nos falou que se tratava da hora do Xirê.
– O que significa Xirê? Perguntou Bolão entrando na conversa.
A hora nos quais os orixás são invocados com cantigas próprias e os filhos de Santo entram na roda. Aqueles são os alabês, apontou a senhora, como os tocadores de atabaques são conhecidos, eles estão a postos para saudar os orixás, o rum funciona como solista marcando os passos da dança, continuava ela a explicar os detalhes, e aqueles outros instrumentos, Rumpi e o Lê, são para reforçar a marcação. A senhora fazia questão de nos ensinar de forma minuciosa.
– Além dos atabaques, há as batidas do agogô e do xequerê. Completou, logo em seguida.
– A senhora é professora de Historia ou Religião? Perguntei, pois achava que a conhecia.
– Sim, sou professora de Religião, ensino no Anísio Teixeira no horário da noite.
Agradeci e perguntei se ela poderia tirar nossas dúvidas a respeito da nossa pesquisa. Ela balançou a cabeça em sinal de acordo.
Chegamos mais perto e ficamos próximo a uma janela lateral que estava aberta, de lá podíamos ver a cerimônia desenrolar. O som, o cheiro, as vibrações, foram ficando diferentes, e de repente, os músicos puxaram um ritmo novo. Do centro da sala alguém anunciou:
– Olhem o canto do caboclo!
Tudo parecia se transmutar, formas, cores, sons e tudo aquilo conseguiu mexer comigo. Sem perceber fui entrando em uma espécie de transe sinestésico e, inesperadamente, vi surgir a figura de um índio à minha frente. Ele estava usando uma espécie de penacho com penas vermelhas, azuis, brancas e amarelas. A figura estava agachada e usando uma vestimenta com penas marrons, usava um imenso colar de conchas e levava um arco e flecha às mãos. Aqui vale uma explicação ao leitor a respeito da figura que representa os Caboclos de Pena. Segundo os estudiosos, eram os índios das tribos que viviam da caça, pesca e que se adornavam com penachos, cocares e colares artesanais. Todos esses Caboclos tinham como finalidade o aconselhamento aos aflitos, lhes indicando banhos, defumadores, oferendas e tudo que pudesse ajudá-los na resolução dos problemas.
Ouvi logo em seguida a aparição do Caboclo, uma voz que parecia como um trovão aos meus ouvidos. Olhando para ele pude perceber que olhava para mim. Sua ordem veio em seguida.
– Vá até o cortejo no Largo da Lapinha, e lá, aos meus pés, alguém deixará a sua missão.
– Nandejara tande rovasa! (Deus vos abençoe!) na língua Guarani.
O ritmo da musica, o cheiro, as cores, as formas, mudaram novamente e da mesma forma que a figura apareceu, ela se foi. O som voltou ao ritmo de antes e nos afastamos.
O que foi isso que aconteceu? Você viu? Perguntei mas Bolão parecia não entender. Achei que aquilo deveria ter feito parte da festa e que todos tinham visto a figura do caboclo assim como eu havia visto. Ficamos por cerca de uma hora até o final da festa.
Então o chamei para procurar a professora de história que havíamos conversado minutos antes, tinha certeza que ela poderia nos orientar a respeito do candomblé e de como isso ajudou a fortalecer a participação dos negros e índios na batalha pela independência da Bahia.
Após encontrar a professora conseguimos uma ótima explicação para fazermos o trabalho. Vencida a primeira etapa tínhamos que ir ao Largo da Lapinha para coletar os dados que restavam para a conclusão da pesquisa e talvez esclarecer aquilo que havia presenciado. Desta vez iríamos focar na participação indígena na luta e resistência ao movimento. No caminho de volta, como havíamos combinado, paramos para comprar as arraias, rabadas, vidro e cola na casa de seu babinha, no Freitas de Baixo e depois seguimos para nossas casas, pois á tarde teríamos que subir a ladeira até o Largo do Queimadinho, largo que ligava a Caixa D’água á Lapinha, via o bairro da Soledade. Durante todo caminho até a minha casa aquela voz permaneceu na minha cabeça, mas, nós tínhamos que nos preparar para o que nos esperava à tarde.
Após o almoço, o encontrei já na porta do prédio me esperando. Cumprimentei o velho amigo que me disse que já havia acertado com o tio para facilitar a nossa entrada na Fonte. Partimos em direção a casa do caboclo na Lapinha. Fomos andando até o local combinado e já bem próximo da entrada da casa onde ficavam os caboclos, já podia ver milhares de pessoas aglomeradas junto a charrete verde tradicional. E lá, em cima dela, repousava a imagem do caboclo, pungente e com suas vestimentas tradicionais: cocar, penacho e colar, nas cores da bandeira do Brasil. Parecia muito com a imagem que havia visto horas antes.
Aqui o leitor, me permita explicar que em 1989 a política regional fervilhava muito em razão da disputa entre a oposição liderada por Waldir Pires, que se fortalecera com a sua participação na nova constituinte de 1988, e do outro lado havia a situação liderada por ACM, que comandava o Carlismo na Bahia. O dia do dois de Julho sempre representou a oportunidade de expressão política para o governo, oposição, e principalmente para o povo, que usava o evento para protestar sobre qualquer tema que lhe fosse de interesse. Tudo isso deixou a festa muito mais cheia e com vários grupos políticos e sociais disputando para marcar o seu território.
Foi nesse ambiente que chegamos, bem na hora em que o cortejo iniciava a saída. As pessoas queriam deixar suas oferendas, pedidos, preces e orikis (orações que exaltam os poderes e feitos dos orixás) aos pés do caboclo e se apertavam para chegar o mais próximo possível, e de lá seguiam em uma espécie de romaria guiada pela charrete com a figura do Caboclo. Empurrados pela multidão fomos seguindo o cortejo e cada vez chegando mais próximos do carro. O carro já ia perto da ladeira do Canto da Cruz quando conseguimos ficar próximo, literalmente, dos pés do caboclo, eu de um lado e Bolão do outro. Os pés estavam encobertos por arranjos de flores e oferendas.
Toda vez que meus olhos paravam na imagem do caboclo vinha à minha mente aquela voz rufando como atabaques, pedindo para que eu chegasse aos seus pés, eu tentava alcançá-los, esticando o máximo meu braço. Todavia, à minha frente estava um obstáculo, uma pessoa alta, vestida com um jaleco. Ela usava um capuz, que encobria parte do seu o rosto. Achei que a conhecia de algum lugar, todavia não tinha certeza, e com aquela confusão toda à volta, não podia vê-la perfeitamente para matar a minha curiosidade, parecia ser alguém que conhecia, mas a imagem do índio se misturava ao rosto dela e me confundia.
Continuei minha saga, fui tentando e cada vez mais me esforçando para colocar uma das minhas mãos nos pés do caboclo, e por sua vez, a pessoa continuava também bloqueando a minha aproximação, pois tentava, assim como eu, alcançar os pés da imagem. Outras pessoas tentavam tocá-la enquanto a carroça estava parada.
Uma salva de fogos subiu ao céu e as pessoas gritaram, em saudação. Chuva, música e suor se misturavam, e através de um esforço hercúleo consegui tocar o pé da imagem, no mesmo instante em que o indivíduo de capuz à minha frente, deixava o seu oriki. Ao puxar minha mão lá estava o papel embrulhado que deveria conter a minha missão. Bolão estava próximo e fazia também o seu pedido junto ao caboclo. Na subida do Santo Antonio de baixo, o chamei para sairmos da romaria. Resolvemos pedir informações a respeito do trabalho a um grupo de índios presentes na ladeira do Canto da Cruz, eles viam do interior do estado todo ano para participar do evento e ganhar algum trocado. Depois descemos pela estrada da Rainha, e eu coloquei o papel que deveria conter a minha missão no bolso.
Ao me despedir de Bolão marcamos de nos encontrar na Kombi do Reage, em frente ao estacionamento do Dique, para assistirmos ao jogo, pois tínhamos que conseguir aqueles dois pontos extras, que nos ajudaria a passar de ano. Decidimos que ele ficaria responsável pela pesquisa e eu pelo texto a ser entregue. Depois de nos despedirmos, fui então à pracinha do conjunto e sentei no banco. Fiquei pensando em tudo que tinha ocorrido e fiquei divagando sobre se deveria ou não abrir aquele papel. Curiosidade e medo invadiram meu coração, sabia que após ler aquele papel, que estava guardado em meu bolso, não poderia voltar atrás. O que tinha no papel? Teria coragem de fazer o que estivesse escrito? Por que eu tinha sido o escolhido? Todos estes questionamentos pairavam em minha cabeça. Retirei o papel do bolso e o amassei, fazendo uma bola bem pequenininha, pensei em jogar fora, porém algo me forçava a segurá-la nas mãos. E depois de repetir algumas vezes o mesmo processo de tentar jogá-la fora e desistir, decidi abrir e ler a bolinha de papel.
Ao ler, concordei mentalmente que cumpriria o que estava escrito naquele papel. Passei o resto do dia em reflexão. Li e reli várias vezes as indicações e decidi fazer o que era necessário.
No dia seguinte, me preparei psicologicamente para executar a minha tarefa. Próximo da hora do jogo vesti minha camisa do Bahia, peguei o que tinha que pegar e fui andando até o estádio. Desci a ladeira do Paiva, cruzei a Baixa de quintas contornando os Dois Leões, passei em frente a antiga Rodoviária e em frente a Sete Portas entrei pela Djalma Dutra, segui caminhando até a entrada do Dique e lá, as pessoas já se aglomeravam próximo a Kombi do Reage, todos revoltados com a não convocação de jogadores do Bahia. Alguns afirmavam que iriam vaiar a seleção o jogo todo, outros diziam que iriam invadir, O clima era tenso e ficaria pior após os comentários da imprensa esportiva de Salvador que pedia um boicote em protesto contra a discriminação ocorrida com os jogadores que havia se tornado o primeiro campeão Nacional representando a região Nordeste.
Avistei Bolão se aproximando, ele estava com uma cara de assustado, talvez fosse com aquela confusão toda. Resolvemos procurar seu tio na entrada do portão do Xareú e muitas pessoas sem ingresso, assim como nós, tentavam entrar forçando o portão. O tio não aparecia e após alguns minutos de pressão sobre o cadeado, este não suportando, quebrou, abrindo a porta e então fomos arrastados pela multidão. Algumas pessoas correram em direção às áreas onde ficava a torcida organizada BAMOR, corri em direção ao lado contrário, subindo rapidamente as arquibancadas inferiores, neste instante me perdi de Bolão. A torcida não parava de chegar, muitos torcedores entoavam cantos contra a CBF e contra o técnico da seleção Lazaroni e o clima cada vez mais se tornava belicoso.
O antigo placar eletrônico anunciava a escalação e a cada nome de jogador vinha em seguida a frase: É o fim da picada! E as vaias se multiplicavam a cada nome. Alguém da organização solicitou que a banda da Polícia Militar tocasse o Hino Nacional, pois a chuva tinha dado uma trégua. Havia chovido muito naqueles dias em Salvador e o gramado estava em péssimas condições. A Banda Militar iniciou o hino e a charanga tricolor começou a tocar e os torcedores começaram a vaiar, cada estrofe do nosso hino, era uma mistura de sons, e foi nesta confusão que a comissão técnica começou a entrar em campo, a chuva desabou, a banda militar aumentava o toque do hino, nas arquibancadas, os timbaleiros da charanga pareciam repicar seus atabaques com mais intensidade, como no terreiro que tinha ido ao dia anterior. Aquela sensação tomou conta de mim novamente e aquilo me indicava que a hora de cumprir a minha missão havia chegado. A figura do Caboclo apareceu novamente para mim.
De repente, uma rajada, proveniente de rojões, cortou o céu, os jogadores começaram a entrar em campo. Nesta hora, vi a figura do índio caboclo apontar em direção a saída dos vestiários onde saia a seleção. Minha missão estava à minha frente. Retirei o ovo da pequena vasilha de plástico que trouxera no bolso e olhei para onde o caboclo apontava, recebi a ordem e lancei com toda minha força. Era como se estivesse lançando uma flecha com arco, vi o ovo fazendo a trajetória de descida em direção à saída do vestiário, neste instante, percebi que mais um ovo seguia a mesma trajetória, olhei e vi que Bolão, a alguns metros de mim, também parecia ter lançado um ovo. Procurei pela imagem do Caboclo e ao olhar para arquibancada superior deparei com uma pessoa de casaco, ela sorriu e sinalizou positivamente. Lembrei que ela usava o mesmo casaco da pessoa que havia acompanhado o cortejo.
Alguém gritou: Renato Gaúcho tomou uma ovada! A torcida foi ao delírio! Comemorou como se fosse um gol. Olhei em direção a Bolão e ele não estava mais lá. Na arquibancada superior pude ver o rosto do caboclo com mais nitidez e ele estava sorrindo. Por um instante acreditei que aquele rosto na torcida, pudesse ser o rosto de Charles, o anjo 45 tricolor, mas era o índio caboclo com o seu arco e flecha apontando para o alto, como se estivesse comemorando. Um raio rasgou o céu e a luz do estádio se apagou. A pessoa havia sumido e com ela a figura do índio foi junto. Aproveitei a interrupção da partida e decidi ir embora também, pois havia completado aquilo a mim destinado.
Sai do estádio de alma lavada, mas ainda preocupado. Tomei assento no velho ônibus Joevanza e desci no final de linha na Madureira de Pinho. Fui para casa com medo de que alguém tivesse filmado ou que tivessem visto, eu ou Bolão jogando o ovo. Pela manhã, assisti a todos os noticiários esportivos e a única imagem que parecia era a do ovo caindo exatamente na cabeça daquele que substituirá o nosso artilheiro tricolor, o jogador Renato Gaúcho. Havia vingado toda a nação tricolor ou teria sido Bolão?
Naquele dia não sai de casa. Peguei a caneta e o papel e me preparei para escrever o texto sobre o jogo, que é exatamente este texto que vocês leitores acabaram de ler, e que só tive coragem de compartilhar agora, talvez movido pelo vídeo do Prefeito de São Paulo. Para fazer o título do texto escolhi a declaração de Renato a todos os repórteres ao término do jogo. Apenas coloquei uma interrogação para que pudesse chamar a atenção da professora.
– A Bahia é terra de índio?
No dia seguinte ao jogo, nos encontramos eu e Bolão na entrada da escola, e seguimos sem trocar uma palavra. Ele trazia a pesquisa e eu o texto. A professora nos chamou no final da aula e pediu para entregarmos a pesquisa. Bolão retirou a pesquisa da mochila, foi até mesa dela e entregou. Ela agradeceu e depois olhando em minha direção me perguntou se havíamos feito o texto, se havíamos presenciado algo interessante no jogo. Retirei o texto que havia preparado e fui em sua direção. Ela parecia mais interessada no texto do que na pesquisa. Ao pegar o texto iniciou a leitura, em silêncio. De vez em quando, parava e levantava os olhos em minha direção. Todos na sala estavam aguardando que terminasse a sua leitura. O silêncio era sepulcral. Ela continuava lendo e intercalava com acenos feitos com a cabeça e olhares para mim.
– Excelente! Parabéns pelo texto. Não tenho dúvidas que vocês realmente foram decisivos para que a missão fosse um sucesso. Falou a professora, agora desviando olhar entre mim e Bolão.
Ela sorriu e pediu para chegar mais perto. Ela nos abraçou e agradeceu. Neste momento pude perceber o quão era alta comparada a mim. Olhei para baixo e pude ver dentro da sacola, que ela trazia todos os dias, algo que fez o meu coração disparar, as minhas mãos ficarem geladas, e minhas pernas tremerem. Dentro da sacola estava o casaco com o capuz igual ao da pessoa que havia encontrado próximo ao cortejo do caboclo no 2 de julho. Ao lado do casaco estava um pequeno cocar e um pequeno arco e flecha, um pedaço de papel que parecia com que eu tinha guardado. Ela me soltou e olhando para nós, sorriu. E com sua voz de trovão decretou:
– Missão cumprida!
Nandejara tande rovasa! (Deus vos abençoe!). Vocês são os verdadeiros heróis de ontem. Saímos da escola e fomos para casa, afinal estávamos de férias.
Até hoje não sei ao certo quem foi o herói que representou a nação tricolor naquele dia, pois nunca mais tocamos neste assunto. Só sei que passamos direto naquela matéria e cumprimos nossa missão.
Coincidência ou não, no dia anterior ao fato ocorrido durante o evento de homenagem a Dória, nesta semana, estava fazendo uma limpeza no meu armário e acabei encontrando o papel amassado que deu origem a toda esta estória. Resolvi jogá-lo fora. Fui até o Dique do Tororó e deixei o vento levá-lo. Quem sabe o papel encontrou outro mensageiro e este pode ter ouvido sons de atabaque vindo de um outro terreiro…
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