Era madrugada em Salvador e, como de costume, Vânio Ricardo, conhecido como VR pelos amigos da rua, finalizava mais uma noite regada a muita bebida. Dessa vez o destino que o acolheu foi o “Rainha da noite” nas Sete Portas, junto com os amigos inseparáveis Pintado, Pichaim, Boqueira e Tico, com os quais dividia as agruras de viver ao relento. Vânio agora só tinha uma preocupação: tomar o gole derradeiro da garrafa de cachaça, companheira inseparável nos últimos anos.

Pichaim o provocava!!!

– Você vai morrer de tanta cachaça, rapaz!!!

Vânio não conseguia se manter em pé e, cambaleando, se encostou na parede da entrada do banheiro.

– Me esquece, Pichaaaaa!!

Boqueira tentou apoiar o amigo, mas bêbado que estava, acabou derrubando a garrafa seca que Vânio segurava.

– Olha o que você fez??? – vociferou Vânio, fulminando-o com os olhos!!!

Tico, o mais gaiato do grupo, pegou a garrafa e resolveu fazer uma sacanagem com o velho amigo.

Enquanto os dois tentavam se esmurrar sem sucesso, pois o efeito do álcool em ambos os tornava cambaleantes, Tico foi ao banheiro e encheu a garrafa vazia com água, retornando logo em seguida.

Entregou de pilhéria a Pintado que chamou Vânio para saborear a nova garrafa de cachaça!!

Vânio, tropecando nas próprias pernas, veio como louco em direção a garrafa e num gesto brusco arrancou das mãos do amigo e em ato contínuo enfiou o gargalo na sua boca adentro!!!

– Isso é águaaaaaaaaa desgramaaaa!!!

Os poucos presentes que teimavam em permanecer no Rainha da Noite viraram e começaram a rir do pobre coitado. Porém, algo estranho aconteceu depois do seu grito. Ele simplesmente revirou os olhos e como uma folha seca foi ao chão. Os amigos Pichaim e Tico foram os primeiros a tentar acudi-lo, seguidos por Boqueira, Pintado e outros presentes.

– Deixa de brincadeira, rapaz!!! – gritou Pichain.

– Sei que faz tempo que você não bebe água, mas desmaiar por causa de um gole??? Levanta, VR!!!! – esbravejou Pintado.

As pessoas assustadas se aproximavam do corpo que não esboçava o mínimo sinal de reação!!!

Maroca, dona do estabelecimento, ao ver o corpo de Vânio caído, praguejou sobre o pobre coitado!!! E pediu para que o levasse até o seu quarto.

Os amigos em um esforço conjunto levantaram VR e seguindo as orientações da dama deixaram o amigo estatelado sobre a cama!!

Maroca era uma mulher calejada, que cresceu na rua vendendo o corpo. E depois de muito sofrer na vida decidiu juntar o pouco que conseguia na noite para abrir o seu próprio negócio.

Conhecia VR há algum tempo, sabia que a desilusão com o futebol e as más companhias levaram a sarjeta. Várias noites, cuidou pessoalmente dos porres dele e até nutria um sentimento de carinho pelo rapaz.

– Ele não está respirando!! – sussurrou Boqueira na penumbra do quarto.

Tico, lembrando dos ensinamentos de Dona Celeste, sua mãe, auxiliar de enfermagem da antiga Sandu, levou a mão ao pulso de VR.

– Acho que ele está morto!!!

Eles se olharam por uma fração de segundo e assustados começaram a balançar o corpo que repousava na cama.

Maroca chorando pousou o rosto no peito de Vânio, tentando ouvir algum som proveniente do seu coração, mas este estava inerte e mudo.

– Morto!!! Morto!! Morto!!! – chorava o amigo Pintado.

Tico se afastou e no canto do quarto caiu de cócoras sem acreditar no ocorrido.

Boqueira e Pichaim, abraçados, choravam a dor da perda do velho amigo de boemia e rua.

Depois de alguns minutos o silêncio foi interrompido pela voz de Maroca.
– Temos que avisar a alguém da sua família!!

– Família??? – protestou Pintado

– Sim. Temos que avisar para que possam enterrá-lo !! – suspirou a amiga.

A família se resumia à mãe e uma irmã que moravam no interior do estado, em uma cidade chamada Anagé. Há alguns anos desistiram de tentar ajudá-lo. As brigas por causa da bebida e a falta de condições financeiras acabaram por afastá-los há mais de 08 anos.

Pintado lembrou da primeira vez que havia encontrado o amigo na rua.

Estava dormindo embaixo da marquise do Edifício União, no Comércio, quando foi despertado por uma confusão entre um pedinte e Vânio, recém-chegado à rua.

Chovia muito naquela noite e os poucos lugares eram disputados a socos e pontapés.

– Vem pra cá rapaz !!!! – chamou Pintado. Tá fazendo o que na rua?? – perguntou ao recém chegado.

– Não tenho casa, emprego e família – Vânio respondeu e as palavras pareciam envoltas em nuvens de álcool!!!

Pintado sabia bem dessa história.

– Qual foi a razão disso tudo, rapaz?? Mulher ?? Jogo??? Drogas???

– A culpa foi daquele lance no final da peneira!!! Era para ser eu!!! Era para ser eu!!!! Era para ser eu!!!! – repetia VR só parando para engolir a cachaça que lhe era companheira.

Naquele dia passaram a noite conversando e Vânio lhe contara do sonho que tinha de ser jogador profissional do seu time de coração, o Vitória.

Pintado era Bahia. Todos na rua tinham seu time de coração e era comum as brigas e brincadeiras por causa disso.

Tico, Pichaim e Boqueira também eram Bahia, mas conviviam em harmonia com o novo morador.

Vânio explicava que por causa de um lance no último minuto da peneira perdeu o teste na Base do clube que amava. E o mais trágico: foi para um jogador de iniciais iguais às do seu nome: “”VR””.

Bastava acordar para lembrar e a ladainha começar novamente.

Agora estava ali, na cama, morto!! Para a sociedade e para a família, já era falecido fazia tempo.

– Ele não pode morrer assim!!! O sonho dele era jogar no profissional do Vitória…

Disse Boqueira, que, num súbito rompante sugeriu:

– Vamos realizar o sonho de VR!!!

– Como podemos realizar o sonho de alguém que já morreu??? – questionou Tico, olhando para os demais.

Boqueira sorriu e, pegando o amigo morto por um dos braços, o levantou da cama de uma forma tão natural que fazia lembrar quando estavam embriagados e se ajudavam nas noites de bebedeira.

Outros ajudaram a equilibrar o corpo de VR, que parecia agora flutuar amparado pelos ombros de Pichaim e Pintado.

– Isso é loucura!!! Temos que avisar a Polícia!!! – gritou Maroca, tentando impedir a saída do cortejo!!!!

Mas foi em vão. Desceram as escadas do Rainha da Noite e, levando o amigo, seguiram em direção à Baixa do Sapateiro.

No Aquidabam fizeram a primeira parada na Barraca do Senhor Mundinho!! Homem bom, que sempre guardava café e pão para a turma da rua.

Boqueira pediu a Mundinho que descolasse uma garrafa de cachaça porque aquela noite era especial para VR.

Mundinho, olhando para a trupe que parecia feliz carregando o amigo, pegou uma lata de cachaça e arremessou no sentido deles. Pintado agarrou de primeira. abriu e tratou de levar a boca do finado, depositando uma quantidade farta!! VR pareceu sorrir. E assim os amigos se despediram de Mundico, que nem percebeu que VR havia partido dessa para melhor.

Assim que entraram na Baixa dos Sapateiros, Boqueira explicou qual seria o plano aos companheiros, enquanto caminhavam levando VR que, de forma involuntária, balançava a cabeça positivamente durante o trajeto. Como se concordasse…

E assim foram bebendo e resenhando com VR até chegar na ladeira do Taboão.

Como vamos entrar na Federação??? – Pichain parecia aflito.

Pintado acalmou os amigos!!

– Trabalhei como chaveiro antes de vir pra rua.

Pintando era viciado em álcool e cola de sapateiro. Como os outros , tinha uma historia de vida triste, o qual depois de varias tentativas de tratamento sem sucesso, foi abandonado pela família e compartilhava das mesmas agruras.

Chegaram finalmente na Praça Castro Alves e enquanto confabulavam de que forma entrariam no Palácio dos Esportes, deixaram VR encostado na estátua do poeta que, como ninguém, soube aproveitar como poucos a vida boêmia. Talvez ele intercedesse na chegada de VR ao paraíso.

Boqueira conhecia aquela região. Durante anos dormira no Cine Gláuber Rocha, quando este estava abandonado. Sabia que tinha uma passagem por trás do prédio. E assim foram levando o amigo VR pela referida passagem.

Entraram, subiram as escadas até chegar na sala de registro. Tico trabalhara no antigo Banco Econômico como compensador e aderiu ao PDV ( programa de demissão voluntária). Devido ao seu problema com álcool, perdeu o emprego, dinheiro e o respeito dos amigos. A sarjeta o abraçou sem cerimônia.

Encontraram um computador ligado. Tico sentou-se e começou a procurar o sistema de registro de jogadores. Achou e procurou pelo nome de Vânio Ricardo dos Santos, sem sucesso. Olhando para o amigo que agora ocupava uma cadeira confortável começou a pensar de que forma poderia registrar o amigo no clube que tanto amava. Foi quando clicou no ícone TMS e digitou as iniciais VR. Para sua surpresa, surgiu a foto de um jogador cujo clube de origem era Internacional, com nome de marca de picolé.

– Pronto, já sei o que fazer! – sorriu com uma imensa satisfação. Precisamos tirar uma foto de VR vestido com a camisa do Vitoria – olhando para os companheiros e fitando VR.

– Vamos procurar nos armários e gavetas! – sugeriu Pichaim e assim fizeram.

Revistaram cada mesa e armário nos andares até entrarem em um salão. Lá, na gaveta da mesa principal de um dos gabinetes, estava a camisa rubro negra com o numero 03, justamente a que ele dizia que deveria ser dele: VR3.

Os amigos voltaram ao setor de registro e fizeram VR vestir a camisa. No computador usado por Tico para acessar o registro, havia uma câmera que foi usada para tirar a foto que faltava ao processo. Ajeitaram VR, posicionaram o equipamento e num flash o desejo de Vânio Ricardo começava a ganhar vida. Tico anexou a foto ao sistema e fez uma copia do Arquivo TMS!!! Nesse momento, o sistema travou. Nervoso, ele tentava de todo jeito destravar, sem sucesso. Até que ao bater em uma das teclas acionou a inclusão do registro no BID e notou que o sistema agora continha o TMS de Vânio Ricardo, porém com todos os dados e numeração do verdadeiro VR3 Rubro negro.

Eles comemoraram como se tivessem feito um gol no último lance da partida. VR estava registrado no BID e seu sonho tinha sido realizado. Mesmo na morte isso tinha seu valor.

Levaram o amigo até o salão, juntaram as cadeiras e deixaram o corpo de Vânio vestido com a camisa rubro negra, imprimindo o certificado de regularização, e colocaram sob seu peito. Saíram do Palácio dos Esportes já amanhecendo. Souberam depois que Vânio foi enterrado pelo sindicato dos jogadores aposentados.

Ganhou um minuto de silêncio em todos os jogos da rodada. E o mais importante, teve sua inscrição no Campeonato Bahiano aceita. A CBF emitiu uma nota informando que a transação transcorrera de forma correta, pois ele estava registrado no BID. A Federação Bahiana informou que ele foi inscrito no prazo. Os advogados do rubro-negro alegaram que Vânio Ricardo sempre jogou nas divisões de base do clube. Alguns torcedores nas redes sociais reverberaram a informação passada por alguns radialistas de que Vânio Ricardo era irmão gêmeo do VR original. A única coisa que até hoje ninguém descobriu foi de quem era a camisa rubro negra encontrada em uma das gavetas da Federação.

Na lápide de Vânio ficou a seguinte frase: “”Descanse em paz futebol baiano!””.

Por Nélio Meneses, Conselheiro do Bahia e membro da Revolução Tricolor